quarta-feira, 19 de setembro de 2007

A fé que fala (e não fala)
(Dave John Merkh)
A Fé que Fala (e não Fala)

Pr. David J. Merkh com Felipe Hirata

Tiago 3:1-12

Certa vez William Shakespeare comentou, "Quando palavras são raras, não são gastas em vão." Outro erudito disse, "Homens sábios falam porque têm algo para dizer; tolos, porque gostariam de dizer algo." Um ditado filipino aconselha, "Na boca fechada, não entra mosca." Os árabes oferecem esta jóia de sabedoria: "Tome cuidado que sua língua não corte seu pescoço."
Salomão em Provérbios nos adverte, No muito falar não falta transgressão, mas o que modera os seus lábios é prudente (Pv. 10:19)
Capítulo 3 de Tiago nos coloca na parede e nos desafia a viver uma fé genuína, verdadeiramente cristã. No final do cp. 2, Tiago nos mostrou como a fé verdadeira manifesta-se inevitavelmente em obras. Agora, no cp 3, ele mostra que "obras" não são somente o que fazemos, mas também o que falamos. E não somente o que falamos, mas o que NÃO falamos!
A língua é um músculo com sua origem no coração. Por isso a língua talvez revele o verdadeiro estado do nosso coração mais rápido que qualquer outra prova de fé genuína listada por Tiago. A língua sou eu. Eu sou o que a língua fala! Às vezes, soltamos uma palavra tão pesada, que cheira mal, e depois exclamamos, "De onde veio aquilo?" Mas o fato é que somos assim mesmo. Abaixamos a guarda e revelamos o verdadeiro eu, mesmo que só por um instante. Assim como Jesus disse, a boca só fala do que o coração está cheio (Mt 12:34). A língua é o dreno do coração! A língua serve como escape daquilo que está borbulhando no coração. Por isso, dizemos que É impossível domar a língua
Se Jesus não domar o coração!
Essa é uma mensagem tão simples, mas que precisamos ouvir todos os dias de nossas vidas. O propósito de Tiago é que sejamos mais sensíveis ao poder incrível da língua, e deixemos que Jesus peneire nossas palavras, filtre nossa fala e lacre os nossos lábios. Veja o poder da língua em Tiago 3.1-12:
I. A Língua tem Poder para Dirigir (3:1-4)
A língua é poderosa. Esse poder pode ser para o bem ou para o mal. Talvez, por ser tão potente, Deus prendeu a língua atrás de duas fileiras de dentes e dentro de uma caverna fechada. Tiago nos lembra que a língua tem um enorme potencial para direcionar vidas.
A. Por quem muito é falado, muito será julgado (3:1,2)
No contexto destas palavras a Igreja primitiva lidava com a valorização e poder dados a quem ensinava e direcionava os novos grupos de crentes que se formavam. Mas isso representava um perigo. A nova liberdade em Cristo, que incluía liberdade para falar em culto público, precisava ser bem manejada (1 Co 14:26-34). Assim como Tiago nos lembrou no cp 1, "Todo homem, pois, seja pronto para ouvir, tardio para falar... "(vs 19).
Os leitores precisavam ficar cientes da seriedade de presumir falar em nome do Senhor.
Conforme o ditado, Quem presume dizer, "Assim diz o Senhor, Deve fazê-lo com temor e tremor."
Tiago não quis minimizar ou desencorajar os dons de falar na igreja (Hb 5:12, Ef 4:11,12; 1 Pe 4:10,11). Sua advertência é totalmente coerente com o princípio ecoado em Mateus 12:26,27 "De toda palavra frívola que proferirem os homens, dela darão conta no dia do juízo; porque pelas tuas palavras serás justificado, e pelas tuas palavras serás condenado."
Há duas razões porque devemos pensar bem antes de assumir a posição de mestre: 1) (Vs 1) O mestre, pela natureza do serviço, tem que falar muito. Por isso, haverá mais palavras para serem pesadas, mais potencial para derramar palavras frívolas, inúteis, pecaminosas, enganadoras.
2) (Vs 2) O mestre tem maior responsabilidade, pois influencia a muitas outras pessoas pelo que fala, e facilmente tropeça no falar. Tem poder para dirigir, ministrar graça, ou enganar para toda a eternidade.
O mestre que não controla sua língua acaba tropeçando sobre a mesma. No mundo da política vemos isso. Um representante do FMI tropeça sobre sua língua e um país inteiro é colocado em descrédito. Um político num momento de descuido fala um anti-semitismo e perde uma eleição.
A mesma coisa pode acontecer com os mestres (professores) na igreja. Temos que medir toda palavra quando ensinamos ou pregamos. Por isso ensinar e pregar são tarefas tão exaustivas. As vidas de homens e mulheres estão na balança. Mas o que ele quis dizer com "maior juízo"? (1 Co 3:10-15, 2 Co 5:10, Rm 14:10-12)-Todos nós compareceremos diante do tribunal de Cristo. Não para sermos condenados (Rm 8:1 diz que isso não existe mais) mas para recebermos os prêmios de Jesus por um ministério fielmente cumprido. Haverá perda de galardão assim como houve perda de oportunidade para ministrar graça em nome de Jesus. Não desista! Seu trabalho não é vão. Mas leve a sério esse trabalho de conduzir os rebanhos do Senhor para pastos verdejantes! b. A língua freada implica em vida controlada (2b-4) Tanto no caso do "freio na boca do cavalo" quanto a do "leme no navio", vemos que uma parte pequena mas estratégica é capaz de direcionar algo poderoso e até grande. O freio se coloca num ponto estratégico, na boca do cavalo. Mesmo pequeno e fraco, consegue direcionar o cavalo com pouco esforço, até de uma criança. Também, o leme é infinitamente menor em proporção ao navio, mas assim mesmo , por ficar num ponto estratégico, é capaz de direcionar um transatlântico como Titanic ou um porta-aviões conforme a vontade de um timoneiro. Assim é nossa língua, pequena porém estratégica. Conforme vs 2b, se conseguirmos refrear a língua, somos capazes de controlar o corpo inteiro. Mas como isso é difícil! Quantas vezes eu já quis frear minha língua quando já era tarde demais! Tantos "foras" que já dei! A nuvem de palavras mortíferas tende a pairar sobre nós até hoje, como uma nuvem preta. Mas uma vez que as palavras escapam de nossa boca, é impossível chamá-las de volta. É realmente desesperador soltar palavras e depois ficar impotente enquanto assiste o estrago que elas fazem. Por isso temos que freá-las o quanto antes.
Palavras como...
*Fofoca *Um "corte" no meu irmão *Ódio *Obscenidade
*Piadas sujas *Ira *Palavrão *Blasfêmia *Vingança *Inveja
Nosso desespero, é semelhante ao daquele motorista no volante de um carro que de repente começa a derrapar, perde o controle. Ele tenta frear, mas já é tarde demais.
II. A Língua Tem Poder para Destruir (5-8) A. Quem a língua solta causa grande revolta. (5,6)
A Palavra de Deus nos adverte contra a destruição causada pela língua. Ao mesmo tempo nos encoraja pelo potencial que esta mesma língua tem para transmitir vida e graça para pessoas desanimadas.
A morte e a vida estão no poder da língua;
o que bem a utiliza come do seu fruto.
A língua serena é árvore de vida,
mas a perversa quebranta o espírito (Pv. 18:21, 15:4).
Em algumas épocas do ano encontramos ao longo das nossas rodovias incêndios quase todos os dias. Isso devido ao descuido de alguns, que sem querer ou não jogam seu cigarro pela janela. Uma pequena faísca acaba destruindo hectares de floresta e terras gramadas.
Em Chicago, nos Estados Unidos, no ano de 1871, um lampião num celeiro deixou 125.000 pessoas sem-teto, destruiu 17.500 prédios e matou 300 pessoas. Já na Coréia, em 1903, 2,6 km2 foram queimados quando algumas brasas na cozinha causaram um incêndio que destruiu 3000 edifícios.
O poder destrutivo das palavras é visto no livro em que Hitler declarou sua filosofia nazista, Mein Kampf. Na II Guerra Mundial, as filosofias expressas naquele livro levaram à morte de 125 pessoas para cada palavra do livro.
Uma vez que a faísca da língua ascende o fogo, é extremamente difícil pará-la, até que tenha destruído tudo em seu caminho. É assim com as nossas palavras. Uma pequena palavra mal-colocada, na hora errada, pode destruir uma vida. Uma palavra de crítica destrutiva; uma fofoca; uma colocação verídica mas cruel, sem tato, pode desmontar uma pessoa, uma família, uma igreja. Pior, a língua alimenta a si mesma. E assim como a língua, o fogo só precisa de oxigênio e combustível para queimar incessantemente . Com um pouquinho de fôlego, nossa fofoca, nossa reclamação, nossa murmuração, encontra bastante respaldo para queimar palavras para sempre. Precisamos evitar este fogo antes que comece!
Pois este fogo, provocado pela nossa língua, começa rapidamente e quando percebemos já se alastrou. Ela é descrita como fogo, consumindo. É um mundo de iniqüidade, que causa a maioria dos problemas que enfrentamos na igreja hoje, pois contamina todo o corpo, incendiando, destruindo a vida das pessoas. É influenciada e incendiada pelo próprio inferno, porque o diabo é fofoqueiro, mentiroso e acusador. Nenhum membro do corpo humano tem tanto potencial para o mal!
Será que minha língua tem sido instrumento de desencorajar, desestimular, ridicularizar, gozar, e destruir? Meu cônjuge? Meus filhos? Meus pais? Meu pastor? Meus vizinhos? Meu patrão? Será que já incendiei vidas pelo poder destrutivo da minha língua?
B. A língua venenosa é muito perigosa (7,8);
Viver com a língua é como dormir com uma cascavel. Pode até parecer que está tudo sob controle, mas na hora em que você menos espera, ela dá o bote.
A natureza da língua é venenosa, mortífera, indomável. Mesmo que o homem consiga domar animal, ave, réptil e peixe, ninguém de nós é capaz de conter nossa língua.
Mas aqui entram as boas notícias. Jesus pode domar a língua porque Ele transforma o coração. O mesmo Jesus, que habita em nós pelo Seu Espírito, quer converter nossa boca! Já ouvi histórias de homens profanos, que cada palavra que saía de seus corações eram palavrões ou piadas sujas, mas que Jesus transformou completamente. Famílias desmontadas, foram reconstruídas por Jesus.
Cristo vive em nós. Ele deseja usar nossa boca como um instrumento para a glória dEle e edificação de vidas. Não para destruir, mas para edificar. Pense: "O que Jesus falaria?"
Em seu livro, "War of Words" (Guerra de Palavras), Paul Tripp aplica essas idéias ao contexto da família: Enquanto escrevo esse livro, fico triste pensando sobre quanta conversa em minha família não reconhece a seriedade que [a Bíblia] dá [à língua]. Não, não temos brigas feias, mas há muitas palavras impensadas, cruéis, irritantes e de reclamações faladas todos os dias.
Creio que somos como muitas famílias cristãs-minimizamos esses "pequenos" pecados da fala porque nosso lar está livre de abuso físico e verbal, e realmente nós nos amamos. Mas... palavras que " mordem e devoram" são palavras que destroem. Não são "tudo bem". Então precisamos fazer tudo possível para dar às nossas palavras a importância que a Bíblia as dá, lembrando que Deus diz que prestaremos contas de cada palavra frívola. (202)
Peça a Deus que peneire as palavras da sua família, especialmente ao redor da mesa, no carro, naqueles momentos de confraternização. Desafio aos pais que vigiem o que é falado em sua casa essa semana, clamando a Deus que transforme toda fala em casa.
III. A Língua tem Poder para Dividir (9-12)
A língua dividida significa fonte corrompida, e que algo está errado com o coração!
A língua é a fonte que jorra hipocrisia e falsidade; é o auge da esquizofrenia verbal. É incoerente, dividida, como língua de cobra. Da mesma boca podemos cantar louvores na igreja e destruir nosso cônjuge no caminho para casa. Podemos dar uma aula de EBD e logo em seguida detonar a vida de um filho. Isso é errado! Mas esse tipo de incoerência é típica da língua. Não significa, necessariamente, que não somos convertidos. Significa que a conversão do nosso coração ainda não alcançou os lábios.
Seria impossível para uma fonte natural produzir água doce e amargosa ao mesmo tempo (11).
Seria impensável colher azeitonas de uma figueira (12), ou fonte de água salgada dar água doce.
Mas a língua pode. A mesma língua, como no caso de Pedro, pode declarar uma revelação celestial para Jesus, "Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo" e na próxima sentença ser reprovado pelo próprio Jesus por ter falado palavras do inferno, "Arreda! Satanás" (Mt 16:17, 23).
Fico imaginando se Tiago, meio-irmão do próprio Senhor Jesus, lembrava da sua juventude, e a maneira pela qual ele e seus outros irmãos tratavam o irmão mais velho, Jesus. Imagine como seria ser irmão mais novo de Jesus! Quantas palavras desgraçadas teriam escapado de sua boca, quando ainda não acreditava que Jesus era o Cristo. Palavras venenosas, diabólicas, talvez um "dedo-duro", com acusações falsas, ciúmes, vingança, ódio. Afinal de contas, não teria sido fácil ser um irmão de Jesus. Imagine seus pais falando, "Tiago, por que você não pode ser como Jesus?"
Mais tarde, tudo mudou. A fonte poluída foi transformada. Água salgada virou doce. O meio-irmão incrédulo, zombador, se tornou líder da igreja em Jerusalém e autor dessa epístola maravilhosa. Tiago destaca que uma fé genuína implica em mudanças radicais (literalmente) na língua! A mudança "radical" significa uma mudança de raiz, ou seja, do coração. O coração controla a língua. Quando Jesus transforma o coração, mudanças têm de acontecer na língua. Às vezes, essas mudanças demoram. Significa que ainda existem sujeiras no encanamento. Mas geralmente uma fonte cristalina tem que produzir palavras cristalinas.
Você já reparou no poder das palavras para fazer bem ou mal? Consegue se lembrar de uma vez em que você foi desmontado por uma palavra desgraçada? Por outro lado, lembra-se de alguma vez em que alguém falou uma palavra de encorajamento que mudou toda a sua perspectiva de vida?
Somos pecadores por natureza, e a tendência natural é de fofocar, resmungar, criticar, xingar, blasfemar. Mas foi por isso que Jesus veio para este mundo-- para resgatar a língua do homem. Para isso, precisava fazer um transplante--não da nossa língua, mas do nosso coração, pois a língua só fala do que o coração está cheio. A morte e a ressurreição de Jesus tiveram como alvo transformar o coração daqueles que depositam sua confiança (fé) nele (e só nele) para a vida eterna. O resultado deve ser uma transformação de vida, a começar com a raiz (o coração) até o fruto (a língua)!
Como, então, desativar esta bomba entre nossos lábios? A resposta bíblica é de pesar, pensar e peneirar nossas palavras. Em outras palavras, falar pouco e falar bem o que falamos.
É impossível domar a língua, se Jesus não domar o coração.

DAVID MERKH está casado com sua esposa Carol a 19 anos e têm 6 filhos. Leciona no Seminário Bíblico Palavra da Vida, e é autor de 5 livros da série "101 Idéias Criativas", Mapa da Mina e Tesouros escondidos (Hagnos).

(Texto extraído do site www.opv.org.br - com adaptações)

terça-feira, 18 de setembro de 2007


O cuidado de Deus não é fábula!

Há algumas histórias bíblicas com as quais temos uma relação ambígua: gostamos delas e delas tiramos constantes ensinamentos. Mas a verdade é que achamos meio difícil acreditar nessas histórias, pois caem muito melhor para as crianças...

Ver os olhos dos pequenos se arregalando e a adrenalina subindo, num salivar de interesse e total envolvimento, nos fascina e encanta. “E então veio um grande peixe...”, narramos, e o grito deles deixa transparecer todo o seu cativamento. Nós, os adultos, é que contamos a história; mas acreditar nela do mesmo jeito, soltando os mesmos gritos de empolgação, aí já é diferente e bem mais difícil. Dessa ponta de ceticismo e raiz de dúvida, nem nós, os pregadores da Palavra, estamos livres. Penso na minha própria experiência ministerial e nas vezes em que preguei sem sair muito convencido do que disse. “E, se Nínive se converteu, qualquer das nossas cidades pode se converter!”, declarava com eloqüência. Mas, quando as pessoas iam embora e eu, sozinho, descia as escadarias da igreja e retornava à minha casa, perguntava a mim mesmo se acreditava no que dissera. E aí me deparava com todo o meu ceticismo e minha dificuldade de crer.

Uma das dificuldades que temos com as histórias bíblicas é que elas refletem uma realidade muito diferente da nossa, com a qual temos dificuldade de nos relacionar. Acabam sendo coisa de outro tempo e de outro mundo. Tenho visto que um dos segredos é tentar trazer o relato bíblico para dentro do nosso mundo. Aí vejo que ele cabe muito bem na nossa realidade e vai tomando formas que constroem uma bonita ponte entre aquela realidade e a nossa; e o nosso ceticismo vai sendo vencido pela realidade do amor e do cuidado de Deus. E estes, por sua vez, vão tomando forma e assumindo diferentes sabores, cheiros e expressões, sempre a nos dizer que Deus é o mesmo ontem, hoje e sempre (Hb 13.8) e cuida de nós ontem, hoje e sempre.
Vamos ver isso mais de perto?

O cuidado de Deus assume muitas formas

Cada vez mais eu me vejo envolto pelo cuidado de Deus e falando desse cuidado que expressa a natureza divina e nos cativa com seu amor. Esse cuidado assume muitas e diferentes formas e se expressa nas pequenas coisas da vida e no nosso cotidiano. Mas às vezes ele assume uma forma radical e dramática.

Quem já não ouviu falar da história de Elias e de como Deus o sustentou à beira de um riacho remoto, à base de pão e carne? Cardápio simples e suficiente, mas servido de um jeito estranho e nada apetitoso: “disk-corvo”! O problema é o corvo que, sob orientação direta de Deus, visita o profeta duas vezes ao dia: “Depois disso a palavra do Senhor veio a Elias: ‘Saia daqui, vá para o leste e esconda-se perto do riacho de Querite, a leste do Jordão. Você beberá do riacho, e dei ordem aos corvos para o alimentarem lá.’ E ele fez o que o Senhor lhe tinha dito. Foi para o riacho de Querite, a leste do Jordão, e ficou lá. Os corvos lhe traziam pão e carne de manhã e de tarde, e ele bebia água do riacho” (1 Rs 17.2-6).

Falemos cá entre adultos: nós celebramos o sustento que Deus dá ao profeta, mas seu jeito de fazê-lo não desce com tanta facilidade na garganta da nossa credibilidade. Seja porque não nos agrada a idéia de um corvo chegar carregando nosso almoço num bico que bicou sei lá onde, seja porque a nossa verve racional começa a fazer perguntas sobre este episódio. Então, preferimos contá-lo a um grupo de crianças crédulas e fascinar-nos com o seu cativamento!
Trazendo o "corvo" para mais perto

Certa vez, visitando os pais da Silêda no Maranhão, eu compartilhei com eles a minha estranheza acerca do corvo levando carne ao profeta. “Que tipo de carne?”, comentei.
Então a mãe dela, mulher de histórias e parábolas, falou: “Pois é... papai sempre nos contava daquela vez em que a família dele foi alimentada por um urubu!”
E contou uma experiência ocorrida lá pelo final do século 19, quando a família do seu pai vivia no interior do Ceará. A vida era difícil e atormentada. Às vezes, eles tinham de abandonar a casa por causa dos bandos de cangaceiros que tomavam conta de tudo. Eles chegavam e se instalavam na propriedade, sem dia marcado para ir embora. Quem não fugia, morria. E os donos acabavam debandando. A necessidade constante de fugir já fizera disso uma empreitada organizada. Suprimentos e utensílios básicos tinham de acompanhar a fuga, pois não se sabia quanto tempo a família inteira precisaria ficar escondida no mato.

Numa dessas fugas, a permanência no esconderijo prolongou-se além do previsto. Os dias passavam e nada de os bandidos irem embora. Os mantimentos estavam acabando, o nervosismo aumentando e todos vivendo a dificuldade de não saber o que fazer. E chegou o dia em que só havia feijão para cozinhar. Era o resto, e era só feijão mesmo. Nem sal havia!
Era costume na região salgar a carne e pendurá-la num varal para secar e virar carne de sol. Volta e meia os varais eram visitados por famintos urubus. Pois não é que naquele dia, enquanto o feijão cozinhava na panela, um bando de urubus sobrevoou o local e um deles, não conseguindo mais carregar o toucinho que havia roubado de algum varal, deixou-o cair justamente ali! Na pressa do roubo e sem muito tempo para fazer escolhas, ele havia agarrado um pedaço maior do que suas garras podiam transportar. Cansadas, elas se renderam e o toucinho despencou exatamente lá onde a família escondida olhava, ansiosa e faminta, para o feijão sem tempero!

Foi pura benção e absoluto cuidado de Deus! O feijão foi salgado e a refeição enriquecida pelo presente do urubu. Assim, não apenas Elias foi alimentado por um corvo. Aqueles rostos ansiosos e tensos, no indesejado esconderijo, nos confins do sertão nordestino, experimentaram o alimento trazido por um “corvo” como um providencial presente, tão inesperado e inusitado quanto necessário.

Dona Lídia me trouxe a história de Elias para perto. Para a sua própria família, ainda que para dias que já vão longe. Mas ela me ajudou a entender que a história de Elias é coisa de Deus e, sendo de Deus, é coisa para os nossos dias. A dificuldade é que muitas vezes não queremos nem conseguimos ver os corvos trazendo o nosso toucinho, expressão do cuidado e do amor de Deus. Mas que tem toucinho no feijão, isso tem.
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Valdir Steuernagel é pastor luterano, trabalha com a World Vision International e com o Centro de Pastoral e Missão, em Curitiba. É autor de, entre outros, Para Falar das Flores... e Outras Crônicas.
(Texto extraído do site www.ultimato.com.br )